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Escrita Criativa / Planos


Planos

O quarto estava uma confusão. Havia roupa espalhada pelos armários e cama, roupa no cesto e comida na secretária... Definitivamente desarrumado. Os pais já não se importavam; por mais que arrumassem e limpassem, o quarto tendia sempre para o mesmo. Miguel não o entendia assim; afinal de contas, o mesmo se passava com um ambiente selvagem. Não era a melhor forma de perceber a situação, mas não deixava de ter alguma verdade.  “Qualquer estrutura tende a ser dominada por formas de vida e pela dinâmica erosiva” – tinha lido quando ainda estudava Ciências da Natureza –; bastava deixar uma qualquer casa desabitada e acabava por ser ocupada pelo mundo natural, dizia a si mesmo. Se bem que meias e bóxeres não são propriamente formas de vida.

Estas reflexões matinais davam-lhe dores de cabeça. Demasiado profundas.

Tinham passado poucos dias desde o Ano Novo, e fizera nessa noite várias promessas, cada uma acompanhada por uma uva passa. Se bem que havia regurgitado a maioria delas, o que fazia delas promessas sem efeito, certo? Uma delas era ser arrumado. Organizar-se. Mas hoje não. Hoje tinha planos.  

***

Entrou no carro com um objectivo em mente: não posso estar parado; engordei, parei de estudar, estou sem emprego... É tempo de ganhar dinheiro, pôr-me em forma e ter uma atitude positiva!
Estava um dia de sol, mas frio. Assim que sentiu o positivismo e era atravessado por um sorriso, o cachecol deu-lhe uma chapada enquanto tentava colocar o cinto, o que contribuiu para uma subtil irritação presente ao longo do restante dia. Mais um daqueles momentos do dia-a-dia que vão incomodando, que acabam por perdurar por nunca haver um momento para descomprimir. O sorriso não lhe durou muito tempo.

***

Sentou-se. A biblioteca inspirava silêncio, o que até nem era bom. O barulho do dia-a-dia interferia com os muitos pensamentos que tinha, a maioria reprimidos pelas tarefas e agitação da vida urbana; mas com silêncio tornavam-se ensurdecedores, e apercebia-se do que era capaz de pensar.
O computador abria-se para os seus olhos como o universo para um ser iluminado. Procurou nos ficheiros o seu currículo, e pensou nas empresas alvo: empresas de artes gráficas, artes, museus, centros de design, formação de formadores... LIDL, JUMBO, Continente. As três últimas deixaram-no com um sabor amargo na boca. Sentia o orgulho a escorrer-lhe pela garganta como gemas de ovos crus, lentamente... sem as puder engolir. Era o fado dos tempos. Assim o diziam...

Devia ter reformulado os seus desejos por altura do Ano Novo: saúde, felicidade, atitude positiva...e emprego; sim, isso seria o melhor. A ideia de trabalhar fora do seu âmbito de formação não lhe agradava. Havia quem dissesse que o orgulho não ajudava nestes momentos, que a humildade era rara e um traço precioso no carácter de um homem – assim o pai lhe dizia. Infelizmente, de humildade a exploração e abuso existe uma ténue barreira, não respeitada na maioria das vezes.
Bem, tudo isto eram palavras. Mãos à obra, era preciso trabalhar.

***

Já tinham passado três horas desde que começara a trabalhar, e ia no seu trigésimo jogo de Starcraft 2. O entusiasmo pelo jogo, a adrenalina da competição, tudo isso contribuia para  procrastrinar. Se bem que...

- Ah, que raio de jogo. Sempre a levar no corpo... Raio dos coreanos. Isto não pode ser. Ora deixa-me cá ver. Pois, 280 acções por minuto. Meu deus. Vou-me dedicar à pesca,  isto assim não vai lá.

O mundo podia bem ser pintado em tons de cinzento e com marcas de água, tal era a tristeza de não ter sucesso nem no jogo nem no trabalho. Sobrava-lhe o amor. Pois... O amor. Quando pensava em amor, carregava ainda mais no preto do cinzento. Era um mundo a preto e cinzento. Faltava-lhe cor e alegria. Talvez pudesse ter um azul e verde, mas isso faria dele um cão.

Navegou por páginas de internet para afagar os seus infortúnios. Mas nem assim. Fechou tudo e foi para a rua; havia mais sítios além dos sítios virtuais. Só aí reparara em como o tempo havia mudado, saíra de casa ainda com sol e agora chovia.

O relógio já marcava próximo das seis da tarde. Os barulhos citadinos fizeram o seu efeito e já não ouvia tantas vozes, mas algumas ainda se mostravam presentes, uma em especial.

Molha-te, deixa a chuva cair sobre a tua cara, sente... 

Irritou-se com a melancolia daquela voz; havia formas de si mesmo que o chateavam continuamente, e esta era uma dessas. Algumas vezes cedia à tristeza, mas hoje não. Hoje tinha planos. 

Sorriu.

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