A Escolha
A música era omnipresente, e todas
as portas davam acesso a um lugar único e fantástico. O som era melodioso e inspirador, nunca cessando de tocar – um som instrumental,
fortemente influenciado por uma sonoridade clássica, modificando subtilmente há
medida que o tempo passava. No entanto, as portas
eram inúmeras e convergiam todas para um mesmo espaço – um qualquer sítio desprovido de cor, negro, metálico e sem fronteiras. Aparentemente,
não havia nenhuma saída, mas aquele parecia ser um inicio.
A música traduzia a crescente
emoção dos presentes, com um aumento do ritmo e da intensidade.
O sítio onde se encontravam não era apenas um labirinto de portas, era
algo que desafiava o senso comum: parecia não haver início nem fim. Os espaços
para o qual cada porta se abria eram magníficos, acolhedores e estranhamente
familiares. De alguma forma pareciam ter fim, quase se podendo tocar o horizonte,
mas assim que se tentava lá chegar apenas surgia uma nova porta. As portas eram
o centro de convergência e divergência de toda a dimensão, sendo toda a
realidade emanada das mesmas. Espaços verdes, luminosos, onde a harmonia
reinava, com sons de natureza. Não parecia haver nenhum perigo imediato. Quem
lá estava, não sabia porquê. Eram doze, todos aparentemente
diferentes, apenas ligados entre si por um ponto de rede – cada um conhecia dois.
- Portas, portas e mais portas. E
esta música, há alguém que a pare?
De madeira densa, castanho
intenso, com um cheiro forte a verniz, as portas eram delicadamente retocadas,
fruto apenas possível do amor de um artista; não eram umas quaisquer portas: eram massivas e perfeitas.
A frustração tornava-se visível
há medida que o “tempo” decorria. A fome também. Assim como outras necessidades.
Não se fazia sentir algum perigo imediato, mas havia medo e receio.
- Tem de haver uma saída, não
fomos colocados aqui por acaso, alguém nos deve estar a vigiar. Há tarados para
isso. Não viram filmes? – Rita tinha dificuldades em compreender o que se
passava, conseguindo apenas estabelecer um paralelismo com situações já vistas
ou vividas – filmes.
- Por amor de Deus, já vimos
todas as portas, já andamos por tudo o que era caminho. Não há saída. Vejam as
próprias portas, é um raio de uma porta em pé. Não há nada à sua volta, como
é que raio se abre e...É impossível.
- ... estou com fome... – O estômago de
Afonso já se fazia ouvir. Já lá estavam há horas indefinidas. Ninguém sabia ao
certo quantas. Nada funcionava, telemóveis, relógios, nada.
- Deviamos tentar arranjar alguma
coisa para comer, entremos numa das portas e tentemos encontrar alguma coisa. –
Dissera Rui.
Andavam sempre em grupo. Ainda não se tinham atrevido a separar-se na busca de uma possível saída.
Andavam sempre em grupo. Ainda não se tinham atrevido a separar-se na busca de uma possível saída.
Assim que entraram, tiveram acesso
a um espaço com animais e umas barracas, equipadas com utensílios de cozinha.
Não tiveram problemas em apanhar os animais e cozinha-los. Mas não era normal.
Os espaços pareciam adaptar-se aos seus desejos, mas não só. Se queriam algo,
saiam de uma dada sala e voltavam a entrar, e tudo parecia estar de acordo com
o que queriam. Mas não encontravam resposta para o mais simples dos desejos:
sair de onde estavam e voltar à sua vida normal.
Há medida que o “tempo” passava,
a sensação de sufoco adensava-se. Por cada porta aberta, perdia-se a beleza da
paisagem e da música; tudo era mais negro, cada vez mais pesado. A música era bela,
mas intensificava as emoções dispersas e confusas. Era um ciclo vicioso.
A tortura do ambiente tornou
insuportável a presença dos demais, do trabalho em grupo: a sobrevivência era a
ordem do dia. Podiam ter acesso a tudo, mas fora-lhes negada a liberdade de
estar com quem mais queriam. A sensação de claustrofobia tornava-se cada vez mais
presente. Rita começara a hiperventilar, e as discussões rebentavam com
facilidade. Não estavam dispostos a passar o resto das suas vidas ali, e ainda menos com quem lá estava.
Separaram-se em altura
indefinida, cada um indo em direcção a uma porta. Assim que fechada, a porta
reaberta não dava acesso à mesma realidade, algo mudava. Os desejos de cada um
não eram iguais, e assim que fecharam a porta uns aos outros, perderam a
possibilidade de se reencontrar na mesma sala. As realidades desejadas e
imaginadas diferiam subtilmente de pessoa para pessoa.
Alguns acabaram por ficar à
espera na zona inicial, mas parecia haver mais portas para uns do que para outros. Nunca se conseguiriam reencontrar. As zonas eram diferentes.
A música ensurdecia, acelerava a
pulsação, e criava confusão, não deixava pensar e ressoava com as emoções,
intensificando-as. Apesar de poderem controlar o mundo, pareciam não conseguir
controlar os seus ímpetos, a confusão instalara-se e só eles próprios se podiam
salvar. Apenas tinham de aceitar o seu estado.
O momento último começou com o
desejo de morte. Não viveriam sozinhos, mesmo que pudessem ter o que quisessem.
A beleza da música tornava tudo ainda mais ridículo; estavam perante algo
perfeito, mas a única coisa que conseguiam fazer era rir, maniacamente. Lágrimas
surgiam dos olhos enquanto o riso intensificava.
As mudanças de humor eram rápidas e os
gritos frequentes. Arranhavam-se e mutilavam-se. O sangue fervilhava no
seu corpo, a mente pregava partidas, ou não, e tudo parecia desmoronar. A
música era bela.
Quando colapsaram sobre si
mesmos, tudo terminara.
Acordaram nos seus quartos, de
regresso à sua vida. Fora-lhes dada a possibilidade de terem tudo o que
desejavam, menos o controlo sobre o livre arbítrio: não podiam escolher com
quem gostariam de estar, apenas lidar com quem estava na sua presença. Perante
essa possibilidade, escolheram: a sua vida em detrimento de uma vida quase perfeita.
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