O Louco
Há algo que nunca se pode reaver:
o tempo.
Sentir a vida a escorrer por
entre os dedos, a escapar por mais que se agarre, é um desconforto muito
próximo da frustração. Há quem não o aceite e lute, barafustando actividades,
reclamando o direito a viver todos os dias como se fosse o último. Há quem o
aceite, e lhe chame de acomodação. Para alguns, é como tentar agarrar um fio de
água: sente-se o toque, mas rapidamente flui e pouco se há a lembrar, apenas
mais para agarrar. Para outros, é como tentar agarrar um ovo cru: sabe-se que se o
agarra, que acaba por escorrer, mas fica na mão uma viscosidade que nos lembra
que o tentamos agarrar e o perdemos.
Era a primeira vez que Luís via o mar aberto. Era também a
sua primeira grande viagem, e grande enjoo.
Nasceu numa aldeia típica do interior, com as suas gentes,
tradições e ambiente. Mas mesmo numa pequena aldeia acabou por não conhecer
muito dela. Cedo afastou-se das pessoas; bem, se foi ele ou os outros,
já nem Eu sei. Em miúdo, verificava que todos gostavam de brincar, mas nem
sempre; havia momentos em que ele planeava jogos e actividades que os
aborreciam, e eles afastavam-se. Aos poucos foi-se reduzindo o número de amigos.
***
- Os quartos de banho são bons? Tens cara de quem já os usou.
Luís nem se tinha apercebido da aproximação de Abel, compenetrado
em memórias que estava.
- Enganaram-me! "Vai e vê o mundo", disseram eles.
Não sabia que se parecia tanto com um cano de esgoto.
As gargalhadas de Abel fizeram-se ouvir.
- Aqui sabes se és homem ou não. Mas tu nunca foste feito de
grande material. Vais ver que esta viagem te vai endurecer essa carne mole.
- Obrigado..., Abel. Preocupas-te muito com a minha masculinidade, mas acho que nunca serei o
homem que devia ser; talvez um dia seja como tu...
Uma nova gargalhada encheu o ar, desta vez ainda mais sonora
e cheia de pulmão, também acompanhada por uma valente palmada nas costas de
Luís. Abel afastou-se a sorrir.
Luís já se sentia melhor;
habituava-se cada vez mais ao cheiro da maresia e à ondulação própria do barco.
De tal forma que rapidamente dava por si novamente a divagar por entre os seus pensamentos.
Mas neste mar já não se enjoava - divertia-se.
***
- Luís, atenção!
A professora batia sempre com o apontador no quadro para
assinalar que ia retomar a aula. Estava lá escrito uma quadra de Luís Vaz de Camões - do primeiro canto. A professora tinha dito que Os Lusíadas eram uma forma
de jubilo ao povo português:
As
armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
Luís gostava de reflectir em
todas as palavras, mas não se limitava a sentir "a grandeza do povo
português, o arrojo da sua partida para o desconhecido", como a professora
tinha dito; tinha um cérebro pragmático e gostava de descortinar
a estrutura das frases, a sequência de palavras, a sua lógica e
sentido.
À sua
maneira, ele também navegava no desconhecido, era arrojado e tinha coragem,
edificava todo um reino, mas não viajava no sentido lato da palavra.
-
Novamente na lua, Luís? Posso?
A voz de
Raquel era cristalina e melodiosa. Sentou-se à sua beira na esplanada assim que o
cumprimentou.
- Um chá,
se faz favor. - Virou-se para Luís depois de efectuar o pedido ao empregado.
- Um belo dia para se viajar, não é? Diz lá, não é maravilhoso viajar? Sair
daquela toca de terra e aventurar-se pelo mundo. Há tanto para ver...
- Para
uns mais do que para outros. Há quem goste; eu também, mas não faço questão de
procurar grandes viagens, perde-se muito tempo.
-
"Perde-se muito tempo"... - Riu-se - Luís..., então diz-me o que
fazes naquela terra que te ocupe tanto tempo. Não vives a vida se não vires
pelos teus próprios olhos o que de magnífico foi feito no mundo. Até nem sei o
que te deu para fazeres esta viagem, mas só te vai fazer bem, vais ver.
A
expressão facial de Raquel era lindíssima. Dona de bons costumes, filha de
famílias abastadas, nunca tinha sentido grandes limitações ao alcance dos seus
sonhos. Pelo menos enquanto os pudesse comprar. Conheceram-se ainda miúdos na
escola; de outra forma nunca tinha tido a oportunidade de falar com ela.
-
Concordo com tudo o que disseste, mas não percebo porque insistes em
dizer que eu não aproveito a vida. Uso muito bem o meu tempo.
- Nem vou
entrar em discussões sobre esse assunto. Vê-se perfeitamente o quão bem usas o
teu tempo: dizes disparates a maioria das vezes, falas de assuntos que não
lembra ao diabo, e pareces um doidinho pelas ruas fora, sempre com o teu
caderno. Não sei o que tanto tens para escrever sobre aquela terra.
- Não
queres entrar em discussões... Mas sabes que é preciso entrar numa discussão
para se dialogar. É algo que só ocorre quando dois participantes têm uma
opinião divergente e a tentam partilhar. De outra forma seria como completar
frases um ao outro. Agora, a forma como o fazes dita parte da qualidade da
discussão; além do conteúdo, claro. Estás familiarizada com Retórica, não?
- Ai, Luís! Aborreces-me. Toda essa conversa é muito vaga; aliás, acho que vou arejar
um bocado. Deixas-me tonta.
Raquel
levantou-se da mesa, com mais elegância do que seria possível imaginar de um
acto tão simples.
- Luís,
sabes uma coisa? És um louco, mas eu gosto de ti assim. Vê-mo-nos por aí. – Tocou ao de leve no
seu chapéu, e deixou escapar um sorriso suave e misterioso.
Enquanto
se afastava, o deambular de Raquel despoletava em Luís diversas sensações,
daquelas que uma bela mulher costuma despertar num homem, apesar de o irritar
pela sua superficialidade.
Luís sorriu. Que belo espécime.
Luís sorriu. Que belo espécime.
Foi um
sorriso que não durou muito. Um enjoo fez-se sentir pouco depois; estava mais
habituado às ondulações, mas ainda não era suficiente. O chá era leve, mas
pesava no estômago.
No fim de contas, aceitou
ficar com o título dado por Raquel. Não se importava. Ele preferia assim.
Lembrou-se novamente do canto de Os Lusíadas e deu por si feliz consigo mesmo: não
precisava de ser mais um Rei no mundo; já tinha um Reino onde era Luís, O Louco.
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