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Escrita Criativa / Batalhas Modernas


Batalhas Modernas



O suor escorria pelos nossos corpos, descobrindo vias por onde nos refrescar, agora que já tínhamos falhado. O ar exalado saía de forma pesada, forçada; o inspirado entrava atrapalhado. A troca de olhares não era correspondida com trocas de palavras; havia apenas cansaço para uns, exaustão para outros, desilusão para todos. A vontade que nos impelia desvaneceu-se.



***



A porta abriu vagarosamente e por ela entrou o nosso treinador. Assim que entrou, entrou algo mais com ele.Tinha ar de quem não se dobrava, não vergava: era duro. O seu peito albergava mais do que um coração: albergava toda uma vida de sacrifício inglório. “Nunca desistir” era o seu lema. Mais fácil dito do que feito, e ele havia feito.


A cadeira tinha sido posta no meio do balneário com o fim de haver uma conversa, fim esse que eu esperava ter sido outro.


Passamos toda a vida a tentar ser quem não somos; vivemos com a percepção clara de que a forma que tomamos não é a derradeira expressão do nosso ser; vemos os nossos objectivos sempre tão perto, mas longe o suficiente para nos lembrar do que ainda falta e para nos ajoelhar perante o fardo de tal responsabilidade. Não é para todos, ser a mudança que queremos ver no mundo.


Hoje não foi um bom dia. Alguns dizem que hão-de vir mais oportunidades, mas não vão. Podia relativizar a perda desta oportunidade, que alguém tinha de perder, e que esse alguém fomos nós. Mas não vale a pena. O sabor da derrota é demasiado amargo.


Suspiro com a perfeita noção de que pouca força tenho para voltar a inspirar e relembro-me...


***
Os treinos eram trabalhados com paixão pelo nosso treinador, orientados na melhoria do nosso desempenho físico, técnico, táctico e mental. Ele acompanha-nos nesta jornada desde crianças, desde as camadas jovens, quando ainda sabíamos pouco do desporto. Éramos arrogantes, presunçosos, preguiçosos, tudo características típicas de jovens sobre-confiantes. Com os jogos, aprendemos a ganhar e a perder; com cada derrota, alimentávamos a nossa ânsia de vitória; com cada vitória, cresciam os nossos objectivos. Na realidade, nunca aprendemos a perder. A derrota nunca era vista como definitiva, era vista como um passo necessário para a perfeição; perfeição essa que nos levaria à derradeira vitória.

A memória desvaneceu-se.  

***

Ali sentado, sem falar, pesava nele a mesma aura que em nós: a aura da derradeira derrota. A diferença? Ele já tinha vivido este momento diversas vezes. O discurso já estava preparado, mas nunca se habitou a ver caras de desilusão.

Sempre tive em boa estima o nosso treinador. A sua história traduz a experiência de muitas vitórias e derrotas. Sempre nos soube orientar. Em momentos de fraqueza, era a voz dele que ecoava em nós e nos encorajava. Na sua maioria, as palavras que nos dirigia eram duras, mas protegia-nos. Preocupava-se connosco, opinava para a resolução de problemas. Era um bom homem!

Mas não acredito em discursos de encorajamento. Falhámos. No futuro, aplicaremos o nosso tempo noutras actividades, até encontrarmos uma determinada tarefa em que nos destacamos. Somos assim, competitivos por natureza, mesmo quando assumimos um papel de entreajuda. Há líderes naturais, há pessoas que se destacam, e quem não se destaca fica frustrado por se relegar a um segundo plano, ou então nunca se apercebe que está nesse plano. “Perder prepara-nos para a vida”, alguns podem afirmar. Discurso de derrotado...Assumindo que alguma vez se ganha, sim, prepara; de outra forma, habitua-nos a assistir à  contemplação dos vitoriosos. Nunca importa quem perde, mas são os que perdem que ficam mais marcados.

Como jogador, sinto que desiludi; como equipa, sinto que falhámos, e sei que as suas palavras serão duras perante o nosso desempenho. Perder não está nos livros, e ser humilhado pior o é.

O silêncio antes da primeira palavra foi ensurdecedor. A ansiedade disparou, e fez-se ouvir lentamente.

“A ferida da derrota é profunda, o seu veneno difunde-se rapidamente e faz-nos duvidar de quem somos. Perdemos, mas não trocaria este momento por nada deste mundo. Parabéns. Há momentos em que não se ganha ou perde, apenas se partilha, e partilho convosco a dor da derrota, mas também o prazer da luta que demos.”

A intervenção deixou-me revoltado! Tinha de responder:

“Mas não há glória para os perdedores”.

À minha afirmação, vi-o fazer algo que não estava habituado: contraiu os músculos da cara de tal forma coordenada que desenhou um jeito facial  que não era comum - o treinador sorriu.

“Não me espero fazer compreender, nem espero que aceites o que disse, é apenas o que sinto.”

O que sinto... Não sei o que foi mais pesado, a derrota ou a aceitação da mesma pelo treinador.

“Descansem! Ainda são jovens: máquinas de combate, corpos fulgurantes de vida e energia, mentes enviesadas para a vitória... Mas há sempre alguém que perde. Um dia habituar-se-ão a isso.”

Escrita Criativa / Por mares nunca antes navegados

O Louco



Há algo que nunca se pode reaver: o tempo.

Sentir a vida a escorrer por entre os dedos, a escapar por mais que se agarre, é um desconforto muito próximo da frustração. Há quem não o aceite e lute, barafustando actividades, reclamando o direito a viver todos os dias como se fosse o último. Há quem o aceite, e lhe chame de acomodação. Para alguns, é como tentar agarrar um fio de água: sente-se o toque, mas rapidamente flui e pouco se há a lembrar, apenas mais para agarrar. Para outros, é como tentar agarrar um ovo cru: sabe-se que se o agarra, que acaba por escorrer, mas fica na mão uma viscosidade que nos lembra que o tentamos agarrar e o perdemos.

Era a primeira vez que Luís via o mar aberto. Era também a sua primeira grande viagem, e grande enjoo.

Nasceu numa aldeia típica do interior, com as suas gentes, tradições e ambiente. Mas mesmo numa pequena aldeia acabou por não conhecer muito dela. Cedo afastou-se das pessoas; bem, se foi ele ou os outros, já nem Eu sei. Em miúdo, verificava que todos gostavam de brincar, mas nem sempre; havia momentos em que ele planeava jogos e actividades que os aborreciam, e eles afastavam-se. Aos poucos foi-se reduzindo o número de amigos.

***

- Os quartos de banho são bons? Tens cara de quem já os usou.

Luís nem se tinha apercebido da aproximação de Abel, compenetrado em memórias que estava.

- Enganaram-me! "Vai e vê o mundo", disseram eles. Não sabia que se parecia tanto com um cano de esgoto.

As gargalhadas de Abel fizeram-se ouvir.

- Aqui sabes se és homem ou não. Mas tu nunca foste feito de grande material. Vais ver que esta viagem te vai endurecer essa carne mole.

- Obrigado..., Abel. Preocupas-te muito com a minha masculinidade, mas acho que nunca serei o homem que devia ser; talvez um dia seja como tu...

Uma nova gargalhada encheu o ar, desta vez ainda mais sonora e cheia de pulmão, também acompanhada por uma valente palmada nas costas de Luís. Abel afastou-se a sorrir.

Luís já se sentia melhor; habituava-se cada vez mais ao cheiro da maresia e à ondulação própria do barco. De tal forma que rapidamente dava por si novamente a divagar por entre os seus pensamentos. Mas neste mar já não se enjoava - divertia-se.

***

- Luís, atenção!

A professora batia sempre com o apontador no quadro para assinalar que ia retomar a aula. Estava lá escrito uma quadra de Luís Vaz de Camões -  do primeiro canto. A professora tinha dito que Os Lusíadas eram uma forma de jubilo ao povo português: 


As armas e os barões assinalados,

Que da ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

Luís gostava de reflectir em todas as palavras, mas não se limitava a sentir "a grandeza do povo português, o arrojo da sua partida para o desconhecido", como a professora tinha dito; tinha um cérebro pragmático e gostava de descortinar a estrutura das frases, a sequência de palavras, a sua lógica e sentido.

À sua maneira, ele também navegava no desconhecido, era arrojado e tinha coragem, edificava todo um reino, mas não viajava no sentido lato da palavra.

- Novamente na lua, Luís? Posso?

A voz de Raquel era cristalina e melodiosa. Sentou-se à sua beira na esplanada assim que o cumprimentou.

- Um chá, se faz favor. - Virou-se para Luís depois de efectuar o pedido ao empregado. - Um belo dia para se viajar, não é? Diz lá, não é maravilhoso viajar? Sair daquela toca de terra e  aventurar-se pelo mundo. Há tanto para ver...

- Para uns mais do que para outros. Há quem goste; eu também, mas não faço questão de procurar grandes viagens, perde-se muito tempo.

- "Perde-se muito tempo"... - Riu-se - Luís..., então diz-me o que fazes naquela terra que te ocupe tanto tempo. Não vives a vida se não vires pelos teus próprios olhos o que de magnífico foi feito no mundo. Até nem sei o que te deu para fazeres esta viagem, mas só te vai fazer bem, vais ver.

A expressão facial de Raquel era lindíssima. Dona de bons costumes, filha de famílias abastadas, nunca tinha sentido grandes limitações ao alcance dos seus sonhos. Pelo menos enquanto os pudesse comprar. Conheceram-se ainda miúdos na escola; de outra forma nunca tinha tido a oportunidade de falar com ela.

- Concordo com tudo o que disseste, mas não  percebo porque insistes em dizer que eu não aproveito a vida. Uso muito bem o meu tempo.

- Nem vou entrar em discussões sobre esse assunto. Vê-se perfeitamente o quão bem usas o teu tempo: dizes disparates a maioria das vezes, falas de assuntos que não lembra ao diabo, e pareces um doidinho pelas ruas fora, sempre com o teu caderno. Não sei o que tanto tens para escrever sobre aquela terra.

- Não queres entrar em discussões... Mas sabes que é preciso entrar numa discussão para se dialogar.  É algo que só ocorre quando dois participantes têm uma opinião divergente e a tentam partilhar. De outra forma seria como completar frases um ao outro. Agora, a forma como o fazes dita parte da qualidade da discussão; além do conteúdo, claro. Estás familiarizada com Retórica, não?

- Ai, Luís! Aborreces-me. Toda essa conversa é muito vaga; aliás, acho que vou arejar um bocado. Deixas-me tonta.

Raquel levantou-se da mesa, com mais elegância do que seria possível imaginar de um acto tão simples.

- Luís, sabes uma coisa? És um louco, mas eu gosto de ti assim. Vê-mo-nos por aí. – Tocou ao de leve no seu chapéu, e deixou escapar um sorriso suave e misterioso.

Enquanto se afastava, o deambular de Raquel despoletava em Luís diversas sensações, daquelas que uma bela mulher costuma despertar num homem, apesar de o irritar pela sua superficialidade.

Luís sorriu. Que belo espécime.

Foi um sorriso que não durou muito. Um enjoo fez-se sentir pouco depois; estava mais habituado às ondulações, mas ainda não era suficiente. O chá era leve, mas pesava no estômago.

No fim de contas, aceitou ficar com o título dado por Raquel. Não se importava. Ele preferia assim. Lembrou-se novamente do canto de Os Lusíadas e deu por si feliz consigo mesmo: não precisava de ser mais um Rei no mundo; já tinha um Reino onde era Luís, O Louco.

Escrita Criativa / A valsa


A valsa

A loja era pequena, um cubículo, onde cadeiras e espelhos estavam dispostos simetricamente, acompanhados por um belo sofá encostado à entrada.

Lá sentado, um velho, um tanto gordo, de cabelos brancos compridos e calvo, esperava que alguém entrasse. Desejava servir. Tinha o seu serviço estabelecido há quarenta anos e era conhecido por Sr. António, o Corta-Matos. Para quem passasse perto da loja, a grande vitrine mostrava um interior rico em velharias, mas desolado, onde o tempo parara. Portugal à antiga.

-Sr. António, bom dia! Vejo que anda folgado.

A entrada na loja foi denunciada pelo tilintar dos ferros suspensos perto da porta.

- Henrique! Bons olhos te vejam. Já me perguntava se a tua barba nunca mais crescia. São os teus pêlos e cabelos que me dão de comer.

- Acompanhados com um bom vinho? Sr. António, sempre o mesmo falinhas mansas. Se fosse só pelos meus,  bem que passava fome.

- Verdade, verdade – Riu-se. – Sente-se!

Começava sempre da mesma forma. A dança do corte, era assim que o Sr. António entendia o que fazia. Quase que ouvia o som de uma valsa enquanto cortava. Primeiro passo: violinos, violencelos, maestro... Começava.

Colocava a mão no ombro de Henrique para o alertar de que ia começar; projectava a bata branca em torno e por cima da sua cabeça – um gesto brusco, mas com elegância, que preparava o cliente. Atava a gola e passava as mãos no tecido para o endireitar. Henrique seguia os passos,  e olhava-se ao espelho à procura de imperfeições; ou mais. Queria acreditar que ainda era um jovem.

A imagem de marca do Sr. António era o constante trautear que acompanhava o corte de cabelo ou barba. Hoje, eram ambos.

Remexia a espuma de barbear  com o pincel, enquanto procurava as linhas de corte na barba, e na cabeça de Henrique.

Não a posso cortar tão rasa, tenho de o trazer cá mais vezes. Sorria para Henrique, que estava sentado e recostado à bela e oponente cadeira.

Tenho de lhe pedir que me rase mais a barba. Não posso passar aqui todas as semanas. Henrique sorria em retorno, com os dentes amarelados e desgastados a surgir por entre a barba farfalhuda.

Dançavam, habituados às suas disputas silenciosas.

As passagens da lâmina sucederam-se, com a barba a sumir a cada passagem. Quando a lâmina se desgastava, puxava do velho cinto enrugado de cabedal para a afiar.

- Um bocado mais. – pedia Henrique

Um bocado menos, pensava António.

Depois veio o cabelo. Ligeiramente calvo, tentava disfarçar a troça do destino com um cabelo curto, muito raso, mas comprido o suficiente para pentear com o seu pente castanho. A dança acabava com Henrique agradado, de gabardine e chapeú na mão. Já podia mostrar com orgulho a sua cabeça redonda; pelo menos por alguns dias.

- Bom, Henrique, apareça mais vezes. Sabe que aprecio a sua companhia.

- António... Só me quer pelo cabelo.

- Disparate! – Sorriram.

Acabou como começou, com o tilintar dos ferros suspensos.

António sentou-se no seu sofá e esperou, no seu Portugal à antiga. 

Escrita Criativa / A Escolha


A Escolha

A música era omnipresente, e todas as portas davam acesso a um lugar único e fantástico. O som era melodioso e inspirador, nunca cessando de tocar – um som instrumental, fortemente influenciado por uma sonoridade clássica, modificando subtilmente há medida que o tempo passava. No entanto, as portas eram inúmeras e convergiam todas para um mesmo espaço – um qualquer sítio desprovido de cor, negro, metálico e sem fronteiras. Aparentemente, não havia nenhuma saída, mas aquele parecia ser um inicio.

A música traduzia a crescente emoção dos presentes, com um aumento do ritmo e da intensidade.

O sítio onde se encontravam não era apenas um labirinto de portas, era algo que desafiava o senso comum: parecia não haver início nem fim. Os espaços para o qual cada porta se abria eram magníficos, acolhedores e estranhamente familiares. De alguma forma pareciam ter fim, quase se podendo tocar o horizonte, mas assim que se tentava lá chegar apenas surgia uma nova porta. As portas eram o centro de convergência e divergência de toda a dimensão, sendo toda a realidade emanada das mesmas. Espaços verdes, luminosos, onde a harmonia reinava, com sons de natureza. Não parecia haver nenhum perigo imediato. Quem lá estava, não sabia porquê. Eram doze, todos aparentemente diferentes, apenas ligados entre si por um ponto de rede – cada um conhecia dois.

- Portas, portas e mais portas. E esta música, há alguém que a pare?

De madeira densa, castanho intenso, com um cheiro forte a verniz, as portas eram delicadamente retocadas, fruto apenas possível do amor de um artista; não eram umas quaisquer portas: eram massivas e perfeitas.

A frustração tornava-se visível há medida que o “tempo” decorria. A fome também. Assim como outras necessidades. Não se fazia sentir algum perigo imediato, mas havia medo e receio.

- Tem de haver uma saída, não fomos colocados aqui por acaso, alguém nos deve estar a vigiar. Há tarados para isso. Não viram filmes? – Rita tinha dificuldades em compreender o que se passava, conseguindo apenas estabelecer um paralelismo com situações já vistas ou vividas – filmes.

- Por amor de Deus, já vimos todas as portas, já andamos por tudo o que era caminho. Não há saída. Vejam as próprias portas, é um raio de uma porta em pé. Não há nada à sua volta, como é que raio se abre e...É impossível.

- ... estou com fome... – O estômago de Afonso já se fazia ouvir. Já lá estavam há horas indefinidas. Ninguém sabia ao certo quantas. Nada funcionava, telemóveis, relógios, nada.

- Deviamos tentar arranjar alguma coisa para comer, entremos numa das portas e tentemos encontrar alguma coisa. – Dissera Rui.

Andavam sempre em grupo. Ainda não se tinham atrevido a separar-se na busca de uma possível saída.

Assim que entraram, tiveram acesso a um espaço com animais e umas barracas, equipadas com utensílios de cozinha. Não tiveram problemas em apanhar os animais e cozinha-los. Mas não era normal. Os espaços pareciam adaptar-se aos seus desejos, mas não só. Se queriam algo, saiam de uma dada sala e voltavam a entrar, e tudo parecia estar de acordo com o que queriam. Mas não encontravam resposta para o mais simples dos desejos: sair de onde estavam e voltar à sua vida normal.

Há medida que o “tempo” passava, a sensação de sufoco adensava-se. Por cada porta aberta, perdia-se a beleza da paisagem e da música; tudo era mais negro, cada vez mais pesado. A música era bela, mas intensificava as emoções dispersas e confusas. Era um ciclo vicioso.

A tortura do ambiente tornou insuportável a presença dos demais, do trabalho em grupo: a sobrevivência era a ordem do dia. Podiam ter acesso a tudo, mas fora-lhes negada a liberdade de estar com quem mais queriam. A sensação de claustrofobia tornava-se cada vez mais presente. Rita começara a hiperventilar, e as discussões rebentavam com facilidade. Não estavam dispostos a passar o resto das suas vidas ali, e  ainda menos com quem lá estava.

Separaram-se em altura indefinida, cada um indo em direcção a uma porta. Assim que fechada, a porta reaberta não dava acesso à mesma realidade, algo mudava. Os desejos de cada um não eram iguais, e assim que fecharam a porta uns aos outros, perderam a possibilidade de se reencontrar na mesma sala. As realidades desejadas e imaginadas diferiam subtilmente de pessoa para pessoa.

Alguns acabaram por ficar à espera na zona inicial, mas parecia haver mais portas para uns do que para outros. Nunca se conseguiriam reencontrar. As zonas eram diferentes.

A música ensurdecia, acelerava a pulsação, e criava confusão, não deixava pensar e ressoava com as emoções, intensificando-as. Apesar de poderem controlar o mundo, pareciam não conseguir controlar os seus ímpetos, a confusão instalara-se e só eles próprios se podiam salvar. Apenas tinham de aceitar o seu estado.

O momento último começou com o desejo de morte. Não viveriam sozinhos, mesmo que pudessem ter o que quisessem. A beleza da música tornava tudo ainda mais ridículo; estavam perante algo perfeito, mas a única coisa que conseguiam fazer era rir, maniacamente. Lágrimas surgiam  dos olhos enquanto o riso intensificava. As mudanças de humor eram rápidas e os  gritos frequentes. Arranhavam-se e mutilavam-se. O sangue fervilhava no seu corpo, a mente pregava partidas, ou não, e tudo parecia desmoronar. A música era bela.

Quando colapsaram sobre si mesmos, tudo terminara.

Acordaram nos seus quartos, de regresso à sua vida. Fora-lhes dada a possibilidade de terem tudo o que desejavam, menos o controlo sobre o livre arbítrio: não podiam escolher com quem gostariam de estar, apenas lidar com quem estava na sua presença. Perante essa possibilidade, escolheram: a sua vida em detrimento de uma vida quase perfeita.

Escrita Criativa / Planos


Planos

O quarto estava uma confusão. Havia roupa espalhada pelos armários e cama, roupa no cesto e comida na secretária... Definitivamente desarrumado. Os pais já não se importavam; por mais que arrumassem e limpassem, o quarto tendia sempre para o mesmo. Miguel não o entendia assim; afinal de contas, o mesmo se passava com um ambiente selvagem. Não era a melhor forma de perceber a situação, mas não deixava de ter alguma verdade.  “Qualquer estrutura tende a ser dominada por formas de vida e pela dinâmica erosiva” – tinha lido quando ainda estudava Ciências da Natureza –; bastava deixar uma qualquer casa desabitada e acabava por ser ocupada pelo mundo natural, dizia a si mesmo. Se bem que meias e bóxeres não são propriamente formas de vida.

Estas reflexões matinais davam-lhe dores de cabeça. Demasiado profundas.

Tinham passado poucos dias desde o Ano Novo, e fizera nessa noite várias promessas, cada uma acompanhada por uma uva passa. Se bem que havia regurgitado a maioria delas, o que fazia delas promessas sem efeito, certo? Uma delas era ser arrumado. Organizar-se. Mas hoje não. Hoje tinha planos.  

***

Entrou no carro com um objectivo em mente: não posso estar parado; engordei, parei de estudar, estou sem emprego... É tempo de ganhar dinheiro, pôr-me em forma e ter uma atitude positiva!
Estava um dia de sol, mas frio. Assim que sentiu o positivismo e era atravessado por um sorriso, o cachecol deu-lhe uma chapada enquanto tentava colocar o cinto, o que contribuiu para uma subtil irritação presente ao longo do restante dia. Mais um daqueles momentos do dia-a-dia que vão incomodando, que acabam por perdurar por nunca haver um momento para descomprimir. O sorriso não lhe durou muito tempo.

***

Sentou-se. A biblioteca inspirava silêncio, o que até nem era bom. O barulho do dia-a-dia interferia com os muitos pensamentos que tinha, a maioria reprimidos pelas tarefas e agitação da vida urbana; mas com silêncio tornavam-se ensurdecedores, e apercebia-se do que era capaz de pensar.
O computador abria-se para os seus olhos como o universo para um ser iluminado. Procurou nos ficheiros o seu currículo, e pensou nas empresas alvo: empresas de artes gráficas, artes, museus, centros de design, formação de formadores... LIDL, JUMBO, Continente. As três últimas deixaram-no com um sabor amargo na boca. Sentia o orgulho a escorrer-lhe pela garganta como gemas de ovos crus, lentamente... sem as puder engolir. Era o fado dos tempos. Assim o diziam...

Devia ter reformulado os seus desejos por altura do Ano Novo: saúde, felicidade, atitude positiva...e emprego; sim, isso seria o melhor. A ideia de trabalhar fora do seu âmbito de formação não lhe agradava. Havia quem dissesse que o orgulho não ajudava nestes momentos, que a humildade era rara e um traço precioso no carácter de um homem – assim o pai lhe dizia. Infelizmente, de humildade a exploração e abuso existe uma ténue barreira, não respeitada na maioria das vezes.
Bem, tudo isto eram palavras. Mãos à obra, era preciso trabalhar.

***

Já tinham passado três horas desde que começara a trabalhar, e ia no seu trigésimo jogo de Starcraft 2. O entusiasmo pelo jogo, a adrenalina da competição, tudo isso contribuia para  procrastrinar. Se bem que...

- Ah, que raio de jogo. Sempre a levar no corpo... Raio dos coreanos. Isto não pode ser. Ora deixa-me cá ver. Pois, 280 acções por minuto. Meu deus. Vou-me dedicar à pesca,  isto assim não vai lá.

O mundo podia bem ser pintado em tons de cinzento e com marcas de água, tal era a tristeza de não ter sucesso nem no jogo nem no trabalho. Sobrava-lhe o amor. Pois... O amor. Quando pensava em amor, carregava ainda mais no preto do cinzento. Era um mundo a preto e cinzento. Faltava-lhe cor e alegria. Talvez pudesse ter um azul e verde, mas isso faria dele um cão.

Navegou por páginas de internet para afagar os seus infortúnios. Mas nem assim. Fechou tudo e foi para a rua; havia mais sítios além dos sítios virtuais. Só aí reparara em como o tempo havia mudado, saíra de casa ainda com sol e agora chovia.

O relógio já marcava próximo das seis da tarde. Os barulhos citadinos fizeram o seu efeito e já não ouvia tantas vozes, mas algumas ainda se mostravam presentes, uma em especial.

Molha-te, deixa a chuva cair sobre a tua cara, sente... 

Irritou-se com a melancolia daquela voz; havia formas de si mesmo que o chateavam continuamente, e esta era uma dessas. Algumas vezes cedia à tristeza, mas hoje não. Hoje tinha planos. 

Sorriu.

Escrita Criativa / Noites de Natal

Noites de Natal

“ “Existirá sempre esperança para quem acredita. Continuarão com a sua vida, convictos de que um dia tudo será diferente.”

Fechou o livro assim que o acabou; de uma forma pesada, vagarosa, pensativa, sentida... Gostara do que lera, mas não tanto do fim. Há tantas possibilidades...

Era madrugada do dia 25 de Dezembro de 2011. Encontrava-se encostado no seu sofá, com a lareira acesa; uma luz dourada tépida enchia a sala de estar. A seu lado, um belo copo de vinho maduro encorpado, um prato com algumas fatias de queijo serra da estrela, e umas fatias de pão-de-ló acompanhavam a sua entrada pela noite dentro. Os pés escaldavam com o calor da lareira  e sabia que ia ficar com frieiras; sabia-o, mas ainda assim mantinha-os lá.  Era um típico serão natalício. Com tudo, menos companhia. Isolara-se há alguns anos, não que fosse anti-social ou que visse na sociedade  alguma forma de injustiça que a tornasse não merecedora da sua companhia. Mas estava sozinho, confortável em sua casa, com o som da chuva e frio a adoçar os ouvidos e a aquecer o coração.

Lembrava-se dos seus primeiros natais, do fascínio das prendas, da curiosidade que sentira pelo Pai-Natal – o tal homem que sabia o que ele fazia, que o observava a toda a hora, à procura dos seus erros e más atitudes. Na altura, chegara a perguntar-se como é que ele conseguia manter toda a gente vigiada. Os pais justificaram-se, mas não acreditara. Só encontrou uma explicação razoável quando soube que tinha a ajuda de gnomos e duendes. Tinha de ser trabalho de equipa.

No seu sofá, sorrira da sua inocência, e perguntara-se o quanto ainda seria.

Decidiu ligar a televisão. Não passou muito tempo e decidiu desligá-la. Já tinha lido livros, estava de barriga cheia, mas ... não valia a pena dormir já. Aborrecido, forçou-se a ver um filme.

Na primeira tentativa, passava uma história de amor, com enlaces de Natal e de magia, onde tudo acabaria bem. Ficou mais aborrecido. A solidão dava-lhe um gosto amargo, ainda mais quando reforçado por este tipo de filmes. Mudou de canal. Desta vez, era um filme de acção e comédia, com dragões, miúdos, vikings, tudo em imagem virtual. Sorriu; gostava da forma como os trejeitos e traços dos desenhos exacerbavam a figura típica dos Vikings. Aquelas bocarras desdentadas, barbas farfalhudas e corpos avolumados, tudo numa figura trapalhona, mas corajosa! Sonhos de miúdo.

Por momentos, esquecera-se de onde estava; sentia apenas bem-estar.

As noites assim eram comuns, mas no Natal havia uma aura diferente. Ouvia as crianças das famílias vizinhas a brincar com as novas adições às suas colecções de brinquedos, o ranger de camas de casais a terem relações sexuais. O silêncio reinava, mas o pouco barulho que se ouvia fazia despertar nele desejos de vida.

Abrira o livro na última página e relera o que não gostara. Muitas das vezes, gostar de algo é uma questão de hábito e treino.

“Existirá sempre esperança para quem acredita. Continuarão com a sua vida, convictos de que um dia tudo será diferente.”

Debruçou-se com as palavras, projectou na sua vida, e encontrou uma resposta. Marcou um número no telefone. Enquanto ouvia o som do toque, o seu coração começou a bater mais forte – palpitações de emoção.

Subitamente, o toque terminara, e um som de fundo surgira, com um  longo tempo de resposta. Ouvia-se um som, mas via uma boca. Lábios vermelhos, pele branca, cabelos longos e escuros; imagens da sua memória. A voz respondera suavamente, com o som da sua respiração à mistura:

- Olá.

Hoje será diferente, pensou.

- Feliz Natal, Isabel.

A voz sorriu.”

Escrita Criativa / Califórnia, 3º episódio.



Curiosidades


"A caminho da escola para mais um dia em cheio - com bolas de lodo ou sem elas -, viu uma rapariga triste junto ao jardim de sua casa. Era Outono e algumas das suas árvores começavam a murchar. Era algo que Califórnia tinha dificuldades em aceitar: pessoas tristes. Sabia que era horrível alguém sentir-se assim;  ele próprio se sentira diversas vezes. Prontamente falou com a rapariga.

- Olá! Desculpa incomodar, mas porque é que estás aqui sozinha? Fugiste de alguém, partiste alguma coisa, alguém te feriu? É por isso que estás triste?

- Ah? Não, a minha casa é aqui atrás... Estou triste porque estou a ver o meu jardim a murchar e não posso fazer nada a esse respeito.

-O quê? – Olhou para o jardim a procura de árvores queimadas, cortadas ou desfeitas. Mas tudo parecia bem. Viu fortes roseiras com rosas fartas e belas, com delicados veludos vermelhos a sair dos seus ramos. Olhou para ela. – Não percebo. O que é que está mal?

- Não vês estas folhas aqui no chão? As árvores estão a murchar,  a ficar amareladas. Não gosto de as ver despidas, gosto de as trepar e sentir o calor do verão encostada aos seus ramos, sentir o som da folhagem enquanto uma brisa faz os ramos baloiçar.

Ficou perplexo, a rapariga falava muito bem. Não estava habituado a ter conversas agradáveis a não ser com Rita. Mas nem eram conversas assim tão boas. Gostava é de olhar para ela e sentir o seu cheiro adocicado.

- Sempre podes ajudar a árvore! Imagina que ela não está  a murchar; imagina que as suas folhas estão verdes e que está novamente calor. Se imaginares com muita força, pode ser que se torne realidade.

Obviamente nada aconteceu; ela sorriu e agradeceu o comentário simpático. Não lhe disse, mas desejou de todo o coração que fosse verdade. Ele sentiu-se estúpido: nem toda a gente é palerma como tu, Califórnia, o Borrado; tens de crescer, um miúdo de 15 anos já devia ter responsabilidades: arranjar raparigas, ter estilo, falar com os professores sobre assuntos interessantes. Fazer alguma coisa. Eu só imagino...

Corou e despediu-se dela; continuou o seu caminho para mais um dia de problemas na escola. Achou-a estranhamente interessante e acabou por olhar para trás enquanto fazia o seu caminho. Ela lá continuava a remexer nas folhas com a sua mão.

Na escola havia barulhos de todos os lados, mas por algum motivo apercebeu-se de um rádio ligado. Passavam notícias sobre engarrafamentos e sobre princesas da música "pop". Gostava muito das princesas da "pop". Achava que elas eram pessoas fantásticas, que podiam ver o que havia de especial na alma das pessoas. Que, no meio de uma multidão, seriam capazes de olhar para Califórnia  e entender que ele era um rapaz especial. Mas na escola não era assim; as raparigas eram estúpidas, só queriam saber dos rapazes mais badalados, e ele era sempre deixado de parte.

Estava um dia de calor. Na sala de aula, o cheiro a suor tornava o ar pestilento.

-Bem, que calor!  Não se pode confiar nos boletins metereológicos, como é possível darem céu muito nublado e temperaturas de 15 °C e estar um tempo destes no dia seguinte? – A professora trouxe mais roupa do que o normal para Verão, tinha sentido um ar frio matinal e sabia do boletim. Sufocava com o calor.

-Ligue o alarme de incêndio, professora. Uma chuva vinha mesmo a calhar! – Os alunos não tinham problemas em imaginar situações. Toda gente o desejava, mas ninguém o iria fazer; era uma questão de princípios.

-Ridículo. Preste atenção em vez de dizer barbaridades.

O calor agitava os alunos, que agitavam a professora, o que em última instância tornava tudo mais difícil. As aulas, a aprendizagem, todos ficavam a perder enquanto continuassem lá dentro.

- Califórnia, não resulta comigo. – Miguel era grande amigo de Califórnia e, apesar de ridicularizar a sua imaginação, dava-lhe o benefício da dúvida em algumas situações. Não custa nada acreditar, se imaginar com força, vou ficar fresco. Nada acontecia, e até achava ter ficado com mais calor - Tu e as tuas ideias... Ainda não sei o que fazes para que eu acredite em ti.

Ligou-se o alarme de incêndio. Tudo se passou muito rapidamente, mas cada momento pareceu  demorar uma eternidade: a professora deu as costas ao quadro e fulminou todos os alunos com um olhar rápido, à procura de um possível culpado. Todos estavam sentados nas suas cadeiras, com a água a cair-lhes lentamente na cabeça.  Viu caras de surpresa e choque ao frio da água, que lentamente se transformaram em sorrisos e euforia. Enquanto o dispersor enviava gotículas em todas as direcções, os miúdos levantaram-se, alguns colocaram-se em cima da mesa e saltaram. Tudo lentamente. A professora apressou-se a desligar o interruptor. No fim, havia nos miúdos um ar de cumplicidade, como se tivessem partilhado um momento especial. Para a professora, era apenas mais um motivo de requerimento. A organização escolar está cada vez pior, já nem fazem inspecções de segurança!

-Vês, Miguel. Eu disse-te!”



Escrita Criativa / Guerra - 5º Episódio.





Sobrevivência


“ – Sois tudo o que resta da equipa de resgate?

- Não, dividimos a força principal em cinco equipas, com o objectivo de limpar, reactivar e organizar o Forte o mais depressa possível. Se bem que todos eles foram atacados pelos mesmas Bestas que nós. Ouvimos pelo intracomunicador... É provável que precisem de ajuda. – O terceiro-cabo era tudo o que restava da hierarquia militar da equipa Tango, juntamente com Vicente e um outro soldado.

- Se há alguma coisa a ser feita, é agora, não temos muito mais tempo. Vamos primeiramente ao núcleo de activação. Salvaremos quem estiver vivo. O mais importante é activar os sistemas automáticos de defesa; não somos o suficiente para nos salvar. – Ricardo já tinha sobrevivido a muitas batalhas contra Bestas; sabia a sua forma de agir, e sabia que se não fossem rápidos tudo teria sido em vão. Dependiam dos sistemas automáticos.

A sua missão era simples, as armas eram  poderosas e estavam apoiados pelos sistemas híbridos de combate - grandes armaduras com poder de fogo destrutivo. Já não era uma missão de resgate, era uma de sobrevivência.

Cruzaram-se com duas equipas e os seus sobreviventes, menos do que havia inicialmente, mas Vicente não sabia bem quem havia morrido. Juntaram-se e continuaram a sua busca; estavam todos de acordo quanto à acção das Bestas: ia ser rápida e cortante.

O caminho foi atribulado, com suor, sangue e cheiro a medo. O ambiente de terror era proporcionado pelas luzes intermenitentes, pelas faíscas dos cabos expostos e cortados pelas garras das Bestas, pelas chapas e metais retorcidos pela acção do poder físico de tais montros, corpos e óleos, sangue e terra espalhados pelo chão.

- O que é que as pessoas fazem quando sabem que vão morrer?

A pergunta deixou Ricardo atónito, mas respondeu com a severidade e seriedade de sempre, com um subtil toque delicado - Vicente, não sei...Eu já passei por isso mais do que uma vez e não tem nada de romântico; a única coisa que faço é agarrar-me o mais possível ao que me resta e, se tiver sorte, o que tinha por certo acaba por me favorecer e fico com mais um dia para contar a história. Ainda hoje me provaste isso. Já agora, ainda não te agredeci por teres vindo salvar-me. Obrigado.

Vicente olhou com orgulho, mas nem tanto; estava ali para o salvar e salvou, mas quem os salvaria? Os olhos de Vicente reflectiram isto e mostraram-se incertos e duvidosos; acreditara em Ricardo antes, mas hoje já não tinha tanta certeza; a sorte não favorece todos, como já tinha sido provado pelos que morreram nesta missão.

A activação do sistema foi mais rápida do que pensavam. As linhas automáticas levantaram-se poucos minutos depois da activação. Se havia Bestas lá dentro ou lá fora, já não entravam ou saiam, apenas faltava eliminar os que ainda estavam no Forte antes de o ataque exterior começar.

Ricardo assumiu a liderança, sendo a patente militar mais elevada.

- Já não somos muitos – Contou quinze, e cinco humanóides; uma outra equipa havia-se juntado ao grupo.- Mas é o suficiente para a defesa deste Forte. Precisamos de todos lá em cima, na Torre de combate. Apenas seis canhões automáticos ainda estão funcionais, o resto ficará a dar apoio de combate próximo, se as bestas conseguirem entrar. Há algumas armas de longo alcance que podiamos usar. Mudamos para armas de combate corpo-a-corpo quando elas se aproximarem. Vamos precisar de alguém nos híbridos para vigiar a porta de acesso interna. Deve haver muitas Bestas por aí, apenas não se manifestaram. Deixemos os humanoides nos túneis de acesso. Dár-nos-ão segurança.

As principais recargas dos canhões automáticos pesavam imenso, num total de vários milhares de toneladas. As balas mais pequenas pesavam meio quilo. Os portões de entrada eram protegidos por pulsos lasers de elevada potência, sendo revestidos com um material reflector, tornando cada pulso uma série mortal de feixes cruzados, fulminando as bestas sem nunca chegarem a perceber pelo que tinham sido atingidas. A estratégia...

Vicente não tinha acabado de observar o que havia disponível para lutar, quando o chão começou a tremer: chegaram.

Subitamente, tudo parou. Os estalidos metálicos dos sistemas ecoavam pelos túneis, mas todos estavam apreensivos; ninguém se mexia e todos estavam calados, à espera. A respiração profunda antes do mergulho.

Uma linha foi activada, o estrondo abalou com a estrutura do Forte e deu início à luta. Começara.

À distância, não pareciam ameaçadores, sendo abatidos em grandes quantidades. Alguns dos  canhões ainda não estavam operacionais, enquanto outros já abatiam a força invasora. Tudo parecia distante numa fase inicial, até que a primeira das bestas entrara na torre, sendo abatida pelos sistemas híbridos. Vicente não aguentara o choque da aparição do monstro e caiu, tal como muitos.

- Aguenta-te, rapaz; não te deixes assustar por um só. Tu ainda vais sentir o toque da pele espessa, rugosa e oleosa em ti; aí sim, vais-te mijar todo. – Ricardo ria-se. Havia sentido o toque da guerra por algumas vezes e tornara-se uma verdadeira máquina de combate.

Vicente tinha os olhos dilatados, nunca vira uma força de bestas tão grande; e eles tão poucos.

- Continuem, reforçem o perímetro a sul. Cuidado com...

A torre abalou com o rasgar dos níveis inferiores. Os túneis foram invadidos por Escavadores e os humanóides começaram a função de limpeza, mas alguns tinham sido esmagados com a emersão das Bestas subterrâneas. Estavam muito próximas.

- Ricardo, tu falaste sobre os sistemas de comunicação terem sido cortados antes de as forças invasoras chegarem. O que é que querias dizer com isso?

- As Bestas não são os nossos únicos inimigos. Não achas demasiada coincidência teres activado a emergência e os Asas ainda não terem chegado? Esse sinal é enviado do nosso Forte para a Central. Não devia ser interrompido pelos Sensores. Acredito que há algo mais por detrás disto, há alguém interessado na queda deste Forte. E para mais, ninguém enviaria trinta das melhores forças de elite, com suporte humanóide, e os dispersaria em cinco equipas quando não tinham a certeza do que os esperava. O vosso Sargento recebeu ordens para que tal fosse feito nessa situação. – A voz tremia enquanto falava com Vicente; o sistema de absorção de impacto dos canhões não conseguia responder à brutalidade dos projécteis disparados.

Tudo era barulhento, todos berravam para se fazer ouvir, mesmo com os sistemas de intracomunicação.

- Ricardo, o último dos humanóides acabou de ser eliminado. Eles devem entrar pela porta a qualquer momento. - O terceiro cabo da equipa Tango ainda era vivo e desempenhava as suas funções com excelência.

- Os híbridos tomam conta disso.

O estrondo do embate dos Porcos Espinhos na porta  aterrorizou todos os que estavam na torre, mas não podiam parar. Era lutar até morrer. Ainda nenhum deles caíra, e já mais de metade da força invasora fora eliminada, mas agora estavam perto... muito perto.

- Ricardo, peço permissão para colocar mais um na entrada; dois híbridos não serão suficientes.

- Faz isso. E toma em atenção...

A porta rebentou e Ricardo foi interrompido, os destroços da porta espalharam-se pela Torre de combate. Os híbridos entraram em acção. Fabulosas máquinas de guerra e destruição; ligadas aos canais de fornecimento de munições da torre, recarregavam automaticamente e não paravam. A matança foi absurda.

- Ricardo, Ricardo, estamos a aguentar, eles vão-se retirar a qualquer momento. Eles não conseguem invadir!

Vicente virou-se para Ricardo e só então reparara porque ainda não ouvira o seu gáudio com a morte de tantas Bestas: o peito havia sido esmagado por um dos destroços do portão; de Ricardo apenas restava um corpo sem vida.”

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