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Escrita Criativa / Colapso

Vida e Morte


Terrível.


“Começou da mesma forma que começa para todos: nasceu do ventre de uma mulher. Todo o sofrimento, toda a dor, tudo para o trazer ao mundo. Começou como todos os outros: chorou.

A partir desse momento, tudo foi diferente. A sua percepção era apurada, as suas reações com o meio ambiente aconteciam como deveria acontecer; a máquina era perfeita. Um organismo biológico feito para evoluir na protecção de uma sociedade, para se tornar um ser consciente, capaz de interagir, perceber e escolher a melhor reacção. Os seus genes traziam a grandiosidade de todo um passado; o potencial do futuro. Houve no entanto um momento que demarcou uma transição. Aquele momento em que o material genético se misturara aleatoriamente mudara tudo – o crossover. 

Os meses iniciais passaram-se normais; foi feito para sobreviver, para estabelecer contacto com o seu redor através de choros e berros. A frustração de não poder comunicar as suas necessidades agitava-o. Era acalmado pelo toque da pele da mãe, pelo prazer do mamilo na boca e pela sensação de alimento a escorrer pela garganta.

Ele aprendia como as outras crianças: observava, imitava, associava. De facto, era melhor do que as outras crianças. A sua curva de aprendizagem era rápida, era movido por uma forte vontade de comunicar.

Os primeiros gatinhares revelaram o poder das suas pernas, ele compreendeu que era forte; as primeiras palavras foram de reconhecimento para com os seus pais: mamã, papá.

Somente aos seis anos ele sentiu que algo lhe era diferente.

As crianças possuiem a inocência e o egoísmo da ignorância. Gostam de rir, de se divertir, gostam de ver , tocar, interagir com seres vivos, gostam de sentir vida.

Ele não. Começou com um pássaro; caiu ferido com uma asa latente de dor. A queda fez o resto do serviço. A agonia na morte do animal despertou nele um forte prazer. Sentiu-se revigorado. Ele sentira vida com a morte do pássaro; vibrou, regogizou, sentiu saliva na boca; adorou o espectáculo. Desde esse momento, passara os dias à procura do sofrimento dos outros, de animais quase mortos na estrada à beira de casa. Tentava encurralar os pássaros no seu salão para os ver bater com um estrondo nos vidros e assim caírem atordoados. Tocava neles enquanto via os seus últimos momentos.

Então evoluiu. Até aos seis anos, ainda não tinha noção do efeito de causalidade. Sabia que algumas vezes as coisas corriam como ele queria. Mas não percebia porquê. Quando sentiu que podia promover os acontecimentos a sucederem-se sobre uma determinada ordem, começou a explorar. Primeiramente com pássaros, depois com cães; com os primeiros, apertava-os quando eles caiam, sentia os seus ossos a estalar e a mingar, com pedaços de carne a desfazerem-se por entre os seus dedos. Adorava o calor que vinha do seu corpo recentemente morto; sentia também como ele arrefecia, e concluira que a sua felicidade só aumentava com a morte do animal; que só quando estivesse frio todo o processo estaria completo. Com os segundos foi diferente. Eram rápidos a fugir dele, não os conseguia dominar com as suas mãos. Assim,  atraia a sua atenção com pequenos pedaços de comida escondidos durante os almoços e jantares, para depois lhes atirar pedras. Ainda assim não os conseguia matar.

Foi a ver a mãe  a fazer o jantar que percebeu que havia meios de proporcionar a separação da carne dos cães: facas.

A primeira vez foi a mais difícil. Estava inseguro de como o fazer, estava inseguro do que aconteceria ao cão. Sabia que iria separar as suas carnes, mas iria ele morrer? Começou por chamar o animal. Ele veio com o seu ar dócil e inocente, baixando a cabeça e abanando o rabo. Era um jovem labrador, já com forte constituição, com os olhos gulosos e cheios de vida. Brincou um bocado com ele; acariciou, sentiu o lamber da sua língua quente, o peso e cheiro do seu corpo ao rebolar com ele.

Espetou-lhe a faca na cabeça; aconteceu tudo muito depressa. De um estado de felicidade, sentiu a necessidade de se apoderar da vida do cão, não aguentava que ele pudesse estar tão feliz quanto ele, ele teria de estar mais, e só o ficaria se o matasse. Pegou na faca e olhou para a sua cabeça,  mas não sabia como o fazer. Via a mãe a cortar a carne, mas a carne não respondia; o cão talvez não achasse o mesmo e respondesse. Ia-lhe tirar a sua felicidade, e sabia que também ele não gostava quando o deixavam triste, quando lhe tiravam a felicidade.

Assim, decidiu fazer tudo depressa para que ele não fugisse. Instintivamente, projectou a faca na sua direcção e sentiu o banho de sangue quente na sua cara. Adorou o espectáculo, continuou a apunhalar e a abrir o animal. Enquanto mexia no seu interior e verificava o estado inanimado, não parava de pensar em como se sentia feliz naquele estado. Tinha as tripas e sangue do animal à sua volta do seu corpo. Fervia em êxtase com o sangue, lambia-o, bebia-o e procurava mais. Na sua ânsia por mais prazer, espetou a faca na sua cabeça.

Acabou de forma diferente de como tinha começado. Agora não chorara, mas deixara um sorriso na cara. Colapsou sobre si mesmo na ânsia de obter vida pela morte.” 


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