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Escrita Criativa / Julgamentos



Julgamentos



“Em seu redor, inúmeras caras rodopiavam e desfocavam do seu olhar, tantas que nem conseguia olhar para quem quer que fosse por mais de um segundo. Estava deitado e suava, sabia que era arguido de um crime; ia ser julgado....

Ninguém sabia bem a razão pela qual quem estava no meio era arguido, sabiam que cometera um crime que não podia passar impune, um crime tal que a qualquer um era dado o direito de o punir de acordo com a sua interpretação de justiça.

Lá no centro, não havia pensamentos na cabeça do arguido, apenas um avolumar de nãos; sem defesa possível, sem já questionar o que o levou até ali, apenas saiam nãos da sua boca. Todas as reacções eram instintivas, reflexo da natureza humana por se manter vivo.

- Um ato bárbaro, esta justiça. –  Vasconcelos pertencia ao Ministério dos Serviços  Estrangeiros e tinha sido colocado na Nigéria. Sabia que a melhor forma de se dar com as populações locais seria aceitar algumas das leis populares, e tentar equilibrar o barco a partir daí.

- Repugnante. Se pudesse, castigava eu mesmo estes animais por tamanha atrocidade. – Trindade era conselheiro de Vasconcelos, e estava ao corrente de tudo o que se passava em  Abuja. O seu dedo extendia-se a toda a Nigéria, mas nem mesmo ele se atreveria a desafiar o seu julgamento.

- Ainda dizem que o povo português é ignóbil... Não compreendo estas leis. Bem, deixemos isto acabar e já intervimos. Tens alguma máscara ou pano contigo? Cheira-me a porco queimado. – Os risos dos populares ainda acrescentavam algo de mais macabro a tudo.


Trabalhos difíceis estes o de compreender diferentes culturas; longe do seu país de origem, todos estes actos lhes pareciam odiosos e injustificados, não percebiam como se chegava a isto.

Já em casa, Vasconcelos sofria imediatamente uma ruptura no espaço-tempo: era transportado dois mil quilómetros para o ambiente da sua terra natal assim que o primeiro pé entrava pela porta. A sua mulher tinha o cuidado de ter a casa o mais tradicional possível, com um toque de elegância. Era Portugal.

-Doçura, vi hoje algo de horrível: um homem foi queimado vivo pelo crime de ser homossexual.

-Que horror... mereciam o mesmo, que os matassem como porcos. Se bem que o tal sujeito não merecesse viver, é animalesco ser homossexual. Se calhar acabou por ser feita justiça e deram descanso à sua alma.- Sentiu um arrepio pelo seu corpo - Não gosto disto aqui, nem sei porque te candidataste a esta posição, deviamos era estar em Portugal.

A vida lá em  Portugal decorria da mesma forma de sempre, calma, com poucos avanços, devagar como sempre tivera sido, pelo menos enquanto a memória não falhava, e com forte identidade Nacional. Ainda assim, as notícias falavam de um País seguramente mais desenvolvido, onde os julgamentos populares ainda ocorriam, mas raramente. 

Vasconcelos lembrava-se de um julgamento em que um dos arguidos tivera sido escorraçado pela população. As caras deles transpiravam raiva, ódio e sede de “justiça”; amontoados uns nos outros, os corpos misturavam-se e apenas se via uma névoa de caras a berrar e a cuspir, com algumas pernas e braços lançados ao arguido,  mas ele tinha cometido um crime, ele tinha violado uma criança, é justificada a revolta da população. Eu mesmo fiquei consternado. Como...

O seu momento de compenetração foi interrompido pela mulher.

-Amor, fiz-te uma tarte de maçã. Olha! Douradinha e com esta crosta perfeitinha, saiu mesmo bem! – O carinho da sua mulher era evidente, apesar de Vasconcelos ser frequentador de casas de prostituição. Talvez não soubesse o que o marido fazia.

Vasconcelos não entendia esta falta como um desrespeito pelo compromisso que havia assumido; precisava de mulheres para satisfazerem as suas várias necessidades. Gostava da posição que a sua mulher ocupava: quando ele chegava a casa, preocupava-se com ele, tomava conta dele e ainda havia dias em que o satisfazia sexualmente. Mas não era suficiente...a própria rotina com os amigos o levava a bares de alterne.

Na manhã do dia seguinte, despediu-se da mulher com um beijo.

-Bem, vou trabalhar, tenho de clarificar algumas situações e devo chegar tarde.- Uma desculpa. Deu o tal beijo.

Chegado ao trabalho, certificou-se de saber o que fazia a família Gonçalves. Eternos inimigos, desde o dia em que os seus interesses embateram e a família Gonçalves saiu beneficiada, procurava destruir a sua influência e posses. Para tal, muitas vezes recorria a métodos não convencionais, desviando fundos e traficando influências. Não via quem atingia, via apenas as notícias, mas não era a mão dele que dava a estocada. 

Lá na Nigéria, interessava-lhe manter o povo eruptível e estúpido. Os investimentos na educação eram poucos, e eram muitos os investimentos em infraestruturas que traziam valor acrescentado para o país de origem. Era uma prática comum, todos os países e todas as embaixadas tentavam ganhar terreno económico. Era uma luta feroz sem sangue, pelo menos o deles.

-Bom dia, Trindade. – Trindade era um acessor exímio, tratava de tudo com extrema eficiência e era pontualíssimo. Não havia falhado nunca a Vasconcelos.

- Bom dia! Então, como foi essa noite? Caseira para variar?

- Sim, é bom regalar a barriga com alguma da comida que ela faz. Como estão os processos?

- A decorrer normalmente. Temos de contratar alguns novos estafetas. Não se sabe o que é feito de alguns e receio bem terem sido mortos ou fugido. São zonas perigosas, como sabe.

- Se fugiram, as autoridades tratarão deles, afinal de contas são criminosos. Se morreram, ninguém se preocupa muito com eles.

- Sim. Já agora, recebi notícias de um outro julgamento público efectuado hoje. Um homem foi acusado de um roubo, e foi regado com gasolina e queimado. Hábito comum este o de queimar. Parece que era um dos nossos estafetas.


- Morreu?



- Sim.


- Ainda bem... Bem, obviamente estes locais são uns animais, sem vergonha nem pudor pelo que fazem. Quero acabar o que aqui me trouxe o mais depressa possível e ir para longe disto. Estou farto de barbaridade."

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