Sobreviver
“Era uma noite chuvosa. No carro,
a chuva batia no parabrisas e as escovas lutavam para desimpedir a visão do
condutor. Ia lento na estrada, sem pressas de chegar; preferia chegar inteiro a
acelerar no seu Renoult tão velho quanto ele.
****
-
Novas oportunidades de emprego! Seja mais, alcance mais com a nossa ajuda,
mostre o seu potenci...- Vítor não deixou acabar a frase, desligou o rádio sem
deixar acabar mais uma publicidade. A voz típica de um anúncio já o
irritava, tanto como o próprio conteúdo. Desta
vez era uma qualquer empresa a vender “qualificações”, mostre o seu potencial...tchh.
Vítor estava desempregado há mais
de meio ano. Jovem e acabado de sair de um curso superior de âmbito alargado,
não tinha competências técnicas especializadas, e isso tornava-o desinteressante
para o mercado.
Lá andava, mais uma noite de
carro após uma ida ao cinema. Tocavam as três horas da madrugada no seu relógio de
pulso, um breve pulsar que associou a todas as outras vezes que ia à última
sessão do cinema.
Era costume dele sair para
refrescar a cabeça. Pensava muito sobre o seu estado, irritava-o sentir-se
inútil e incompetente. Irritava-o mais saber que tinha errado há 5 anos.
Chegou a casa sem grande
satisfação, apenas a sensação de um objectivo cumprido – estava vivo. A cadela de
estimação foi ter com ele, dócil, obediente e submissa como sempre.
Obrigou-se a pensar sobre tamanha
dedicação. Ele não se lembrara de alguma vez se ter dedicado de tal forma a
alguma coisa de interessante para a sua carreira profissional. Interessara-se
por tudo que era fútil e secundário. Perdera-se no caminho.
****
O quarto estava como era costume:
arrumado, tudo no sítio. O próprio quarto o irritou; sem uma mulher, sem
nada... Até deitar-se foi um martírio, não pudia deixar de pensar o quanto
sentia falta da vida académica; a vida em casa dos pais trazia-lhe um sabor
amargo à boca; sentia que tinha perdido a sua identidade, que a terra o
agarrava, um vórtice que o impedia de fugir. Logo ele que detestava a sua terra
natal. Sentiu-se desamparado; olhou para o portátil e tomou uma decisão: havia
de se satisfazer, nem que fosse por meios próprios. Inadequado para alguém
daquela idade, mas sem outra opção; era isso ou a cadela. Fez a escolha certa.
Não era algo da qual se orgulhasse, mas tinha de ser feito.
****
Pensou nas aulas de psicologia do
secundário: era familiarizado com a hierarquia das necessidades e percebera
que uma tinha sido satisfeita e abrira caminho à manifestação de outra: fome.
Foi à cozinha comer uma maçã, logo seguido por um cacho de uvas pretas.
Sentia-se melhor quando sentia o sabor doce da fruta. Olhou para a televisão e
decidiu ligá-la. Ver uma série talvez o distraísse, apesar de quase serem
quatro da manhã. Assim que a ligou, desligou-a imediatamente. O que é que estou a fazer... São quatro da manhã, vou dormir; amanhã tenho
muito pela frente , um dia inteiro de actividades para não fazer.
Adormecer foi fácil: deitou a cabeça e
nem se apercebeu que já dormia.
****
A manhã chegou cheia de
possibilidades: uma oferta de emprego, um convite amigável, um acaso durante o
seu café rotineiro que o levasse a conhecer uma mulher interessante; tudo isto
eram desejos inconscientes, que raramente se concretizavam.
Lá conseguia ir a algumas
entrevistas de emprego, quase sempre frustradas. A razão pela qual pensara que
tinha sido um erro tirar um curso de âmbito alargado concretizava-se nas
recusas constates das entidades empregadoras. Não há nada a fazer, são as armas que tenho, é com elas que tenho de
sobrevive: fisgas no meio de um arsenal
de guerra...Apesar de desmotivado pelas sucessivas recusas, mantinha a
esperança. Não queria sair de Portugal, evitava a todo o custo a tomada de
decisão que o levasse para fora do país. Mais
algum tempo...
****
Após passar mais de oito horas à
procura de emprego, perguntou-se sobre o
que fazer. Tinha de fazer algo para afastar o fantasma da sua situação. Cinema não, já tinha ido. Hoje talvez vá
a um bar. Vou telefonar a uns amigos.
A aventura surtiu o efeito
desejado; esqueceu-se da sua situação e deixou que outras necessidades se
impusessem sem lhes dar grande luta. A noite estava boa, apesar de enublada; um
frio manhoso afastava um bocado as pessoas da praça principal, mas elas reuniam-se nos
bares da rua.
****
Todos os dias era a mesma coisa:
procurava emprego, tentava manter-se actualizado, tentava estudar qualquer
coisa e ia-se divertir. Pensava que variava muito no seu dia a dia, mas
resumia-se a isto. Em casa, era lembrado da sua situação pela omnipresente e
chata mãe. A preocupação é boa, mas só enquanto não sufoca. Amor de mãe, diziam alguns.
Deitava-se e em nada pensava, não
valia a pena. Sentia-se aldrabado, que o tinham enganado com palavras floreadas.
Agora só pensava numa coisa: Sobreviver,
é só isso que interessa; eu, quem eu amo, quem me ama, e já agora, toda a gente.
Esperava que um dia a sua sobrevivência garantisse o bem estar de todos os que
o rodeavam.
Para já, era apenas um jovem desempregado, sem grandes ilusões, com grandes sonhos, mas
consciente."
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