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Escrita Criativa / Vidas


Sobreviver


“Era uma noite chuvosa. No carro, a chuva batia no parabrisas e as escovas lutavam para desimpedir a visão do condutor. Ia lento na estrada, sem pressas de chegar; preferia chegar inteiro a acelerar no seu Renoult tão velho quanto ele.

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- Novas oportunidades de emprego! Seja mais, alcance mais com a nossa ajuda, mostre o seu potenci...- Vítor não deixou acabar a frase, desligou o rádio sem deixar acabar mais uma publicidade. A voz típica de um anúncio já o irritava,  tanto como o próprio conteúdo. Desta vez era uma qualquer empresa a vender “qualificações”, mostre o seu potencial...tchh.

Vítor estava desempregado há mais de meio ano. Jovem e acabado de sair de um curso superior de âmbito alargado, não tinha competências técnicas especializadas, e isso tornava-o desinteressante para o mercado.

Lá andava, mais uma noite de carro após uma ida ao cinema. Tocavam as três horas da madrugada no seu relógio de pulso, um breve pulsar que associou a todas as outras vezes que ia à última sessão do cinema.

Era costume dele sair para refrescar a cabeça. Pensava muito sobre o seu estado, irritava-o sentir-se inútil e incompetente. Irritava-o mais saber que tinha errado há 5 anos.

Chegou a casa sem grande satisfação, apenas a sensação de um objectivo cumprido – estava vivo. A cadela de estimação foi ter com ele, dócil, obediente e submissa como sempre.

Obrigou-se a pensar sobre tamanha dedicação. Ele não se lembrara de alguma vez se ter dedicado de tal forma a alguma coisa de interessante para a sua carreira profissional. Interessara-se por tudo que era fútil e secundário. Perdera-se no caminho.  

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O quarto estava como era costume: arrumado, tudo no sítio. O próprio quarto o irritou; sem uma mulher, sem nada... Até deitar-se foi um martírio, não pudia deixar de pensar o quanto sentia falta da vida académica; a vida em casa dos pais trazia-lhe um sabor amargo à boca; sentia que tinha perdido a sua identidade, que a terra o agarrava, um vórtice que o impedia de fugir. Logo ele que detestava a sua terra natal. Sentiu-se desamparado; olhou para o portátil e tomou uma decisão: havia de se satisfazer, nem que fosse por meios próprios. Inadequado para alguém daquela idade, mas sem outra opção; era isso ou a cadela. Fez a escolha certa. Não era algo da qual se orgulhasse, mas tinha de ser feito.

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Pensou nas aulas de psicologia do secundário: era familiarizado com a hierarquia das necessidades e percebera que uma tinha sido satisfeita e abrira caminho à manifestação de outra: fome. Foi à cozinha comer uma maçã, logo seguido por um cacho de uvas pretas. Sentia-se melhor quando sentia o sabor doce da fruta. Olhou para a televisão e decidiu ligá-la. Ver uma série talvez o distraísse, apesar de quase serem quatro da manhã. Assim que a ligou, desligou-a imediatamente. O que é que estou a  fazer... São quatro da manhã, vou dormir; amanhã tenho muito pela frente , um dia inteiro de actividades para não fazer. Adormecer foi fácil: deitou a cabeça  e nem se apercebeu que já dormia.

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A manhã chegou cheia de possibilidades: uma oferta de emprego, um convite amigável, um acaso durante o seu café rotineiro que o levasse a conhecer uma mulher interessante; tudo isto eram desejos inconscientes, que raramente se concretizavam.

Lá conseguia ir a algumas entrevistas de emprego, quase sempre frustradas. A razão pela qual pensara que tinha sido um erro tirar um curso de âmbito alargado concretizava-se nas recusas constates das entidades empregadoras. Não há nada a fazer, são as armas que tenho, é com elas que tenho de sobrevive:  fisgas no meio de um arsenal de guerra...Apesar de desmotivado pelas sucessivas recusas, mantinha a esperança. Não queria sair de Portugal, evitava a todo o custo a tomada de decisão que o levasse para fora do país. Mais algum tempo...

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Após passar mais de oito horas à procura de emprego, perguntou-se sobre  o que fazer. Tinha de fazer algo para afastar o fantasma da sua situação. Cinema não, já tinha ido. Hoje talvez vá a um bar. Vou telefonar a uns amigos.

A aventura surtiu o efeito desejado; esqueceu-se da sua situação e deixou que outras necessidades se impusessem sem lhes dar grande luta. A noite estava boa, apesar de enublada; um frio manhoso afastava um bocado as pessoas da praça principal, mas elas reuniam-se nos bares da rua.

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Todos os dias era a mesma coisa: procurava emprego, tentava manter-se actualizado, tentava estudar qualquer coisa e ia-se divertir. Pensava que variava muito no seu dia a dia, mas resumia-se a isto. Em casa, era lembrado da sua situação pela omnipresente e chata mãe. A preocupação é boa, mas só enquanto não sufoca. Amor de mãe, diziam alguns.

Deitava-se e em nada pensava, não valia a pena. Sentia-se aldrabado, que o tinham enganado com palavras floreadas. Agora só pensava numa coisa: Sobreviver, é só isso que interessa; eu, quem eu amo, quem me ama, e já agora, toda a gente. Esperava que um dia a sua sobrevivência garantisse o bem estar de todos os que o rodeavam. 

Para já, era apenas um jovem desempregado, sem grandes ilusões, com grandes sonhos, mas consciente."

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